
Os automatismos e a reforma íntima
Cristiane Beira

Quantas vezes lamentamos: Por que agi daquela forma?! O que deu em mim?! Não era bem isso que gostaria de ter feito ou falado. Quem já não viveu a experiência de sentir que algo dentro de si é mais forte que a vontade de pôr em prática os planos elaborados mentalmente? Planejamos uma coisa e fazemos outra.
Chamamos essas reações que parecem involuntárias de automatismos. É uma força que toma conta de nós e nos leva a dizer ou agir de forma adversa ao que gostaríamos conscientemente. Funcionamos como um mecanismo pré-programado que, ao receber certos estímulos, imediata e automaticamente, responde de maneira determinada. A esse fenômeno, a Psicologia Junguiana deu o nome de ativação de complexos.
Os complexos são experiências com forte carga emocional, registradas em nosso inconsciente que, ao serem ativadas, assumem a consciência, tomando o lugar do ego. Por isso muitas vezes nos sentimos fora de nós mesmos, o que de fato aconteceu, se pensarmos em nós mesmos como sendo o ego.
São nossas sombras interiores, onde estão arquivados os complexos, que nos levam a tomar decisões não baseados no amor fraternal, no bem comum ou nas virtudes cristãs, como muitas vezes planejamos, mas em mecanismos de autodefesa, de necessidade de provar nosso valor e de busca de interesses pessoais.
E, quando um complexo constela, todo um pacote emocional é ativado e as reações costumam ser proporcionais. Há pessoas que atacam, gritam, xingam, brigam. Outras se deprimem, choram, sentem-se vítimas. E há, ainda, aqueles que se vingam, de forma estratégica e calculista. Isso é ser ser humano, ao menos no estágio evolutivo no qual nos encontramos.
O apóstolo Paulo, em seu processo de autoconhecimento, constatou a existência dessa estruturação psicológica, quando afirmou: Pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse pratico. (Rm, 7:19)
Assim sendo, conscientes da existência desse engenhoso fenômeno psicológico, parece inteligente de nossa parte uma atenção redobrada. A sugestão evangélica Vigiai e orai (Mt, 26:41) vale tanto para o mundo de fora, pois que devemos nos precaver das ocorrências exteriores, quanto para o mundo interno, acautelando-nos diante de nossos pensamentos, sentimentos e automatismos psicológicos.
O maior problema, no entanto, não está no automatismo em si, ou seja, em reagir de uma ou de outra maneira, mas em negar que isso aconteça, rejeitando o fato de que estejamos sob efeito de um complexo e justificando nosso comportamento, pois essa atitude colabora para o fortalecimento do automatismo.
Quando, portanto, estamos conscientes de nossa reação, assumindo a responsabilidade por nossas atitudes, estudando nossos sentimentos, avaliando alternativas e procurando compreender qual complexo está sendo ativado, então diluímos a força daquele pacote operante, que passa a ser desconstruído ou integrado.
A forma como nos deixamos arrastar pelos automatismos, provoca, não apenas situações aflitivas em nosso ser, perturbando os sentimentos e atormentando nossos pensamentos, mas interferem, igualmente, em nossos relacionamentos, muitas vezes de forma decisiva, afastando-nos de nossos afetos mais preciosos.
Ao investirmos no autoconhecimento, vigiando nossas emoções e reações, procurando nos responsabilizar pelas nossas atitudes e não permanecendo na postura infantil de quem busca culpados fora, justificando seus comportamentos como se estivesse sempre correto e fosse perfeito, então nossas uniões seriam mais pacíficas e harmoniosas, pois que:
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compreenderíamos que, muitas vezes, a pessoa (assim como nós próprios), está agindo sob influência de algum automatismo, e então, não a julgaríamos como se houvesse escolhido conscientemente sua atitude, por ser má;
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não levaríamos para o lado pessoal quando alguém reage de forma rude ou até cruel, lembrando que pode ser um processo automático e inconsciente, que seria ligado, independente do interlocutor com quem nosso ofensor fala;
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não exigiríamos do outro (nem de nós mesmos), aquilo que ele não é capaz de dar quando está sob efeito de algum complexo ativado, e teríamos paciência, auxiliando-o na busca do autoconhecimento, identificando o mecanismo acionado, sua origem, e a melhor forma de lidar com ele.
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Mas, para estabelecer relacionamentos levando em consideração os mecanismos automáticos de reação, sendo, portanto, mais compreensivos e pacientes uns com os outros, é preciso coragem e determinação, porque é uma forma de lidar muito diferente daquela que vimos treinando ao longo de várias vidas.
A reforma íntima proposta pelo Espiritismo passará, certamente, por essa questão, uma vez que ninguém atingirá a transformação pessoal sem antes iluminar as sombras e identificar os complexos atuantes.
Somente assim poderemos modificar nossas reações e, ao invés de justificativas e escusas, seríamos capazes de dizer, diante de uma atitude infeliz: Desculpe-me, ainda me escapa essa reação, mas sei que é imprópria e conto com sua compreensão para me dar a oportunidade de continuar buscando iluminar esse automatismo. Nesse caso, é possível que o interlocutor não se incomode tanto, nem fique irritado, envolvendo-se, inclusive, em nosso processo de autoconhecimento.
Fonte: Jornal Mundo Espírita (novembro de 2017)