

Cremos que quem viveu momentos de graves crises sociais tem alguma autoridade moral para recomendar atitudes favorecedoras do enfrentamento e/ou superação dos mesmos. Sobreviventes de cruéis genocídios e perseguições trazem, muitas vezes, uma voz que vai além do alerta em relação aos processos de desumanização e violência para indicar caminhos e atitudes que acreditam poder auxiliar as criaturas humanas na conquista do equilíbrio e justiça sociais.
Um desses personagens, Paulo Freire, emérito educador brasileiro, vivenciou no Nordeste brasileiro, especificamente no Recife, sua cidade natal, um doloroso processo de opressão, perseguição e exílio. Apresentando uma leitura crítica da opressão vivenciada pelos excluídos teve sua voz censurada e banida, o que o levou a outros países, no engajamento de lutas sociais pela democracia, através de sua fala, de seus livros e de suas múltiplas intervenções. Ao retornar ao Brasil, continuou sua luta em testemunho às ideias que propagou, deixando um valioso legado humanista e uma crítica ao mundo das desigualdades e desumanidades.
Mesmo vivendo uma experiência dolorosa, Freire usou e propagou uma expressão verbal das mais significativas em sua vida e que utilizaremos como ponto de partida de nossa reflexão: esperançar. Não pense o leitor que essa ação se circunscreve ao ato de simplesmente esperar como pensam alguns. Vai até além do ato de cultivar a esperança, essa virtude já preconizada pelo Apóstolo Paulo, em sua célebre Carta aos Coríntios. A esperança é consolo, é amparo, é resistência, é bússola e guia, é estímulo ao soerguimento, encorajamento, é bênção do céu para toda a existência.[1]
O verbo esperançar, por sua vez, potencializa todas essas visões de esperança e se traduz por buscar, lutar, transformar. É uma ação de não-conformação diante da realidade desumana, violenta, é busca de sua superação.
Esses são dias tormentosos, todos concordamos. A realidade atual se nos revela paradoxal: progresso intelectual com grandes conquistas em todos os campos da atividade humana, ao lado da crueldade, da indiferença egoica, da exclusão e da violência em suas múltiplas faces como monstro devorador da alegria e da esperança.
Momentos de crises morais em que o organismo social estertora sob o guante da luta entre a velha ordem caracterizada pelo egoísmo e pelo orgulho e as aspirações de uma vida nova assinalada pela fraternidade e pelo respeito, pela dignidade e cultura de paz.
Afirma-nos o Codificador Allan Kardec [2] que a época atual é de transição; confundem-se os elementos de duas gerações, que representam a velha ordem e a esperança na nova ordem, a era do progresso moral. Qual, nesse quadro, a nossa responsabilidade? Diremos: esperançar, ou seja, movidos pelas convicções de que o homem não está destinado irreparavelmente ao mal e pela sua vocação ontológica voltada à evolução que é seu destino, não interiorizemos o discurso do não tem jeito, do niilismo, da desesperança.
Sofrendo, dia após dia, o impacto das informações visualizadas em cenas terríveis, a criatura se sente minúscula e impotente diante do cenário dantesco desses momentos de transição. Esmeram-se os meios de comunicação de massa para nos retratar a realidade, embora quase não divulguem as ações beneméritas, o esforço de pessoas e grupos no trabalho de amparo à dor. E é nesse contexto que somos chamados a fazer a parte que nos cabe lutando contra o desânimo, buscando atitudes novas de valorização da vida e gratidão operante através de realizações voltadas para a fraternidade, a solidariedade, o cuidado conosco, com o próximo, com a natureza.
Se o espírita deve ser reconhecido pela sua transformação moral, o esperançar está presente como desafio em sua vida cotidiana. Ser a mudança que quer ver no mundo, como dizia Gandhi, é o grande desafio que temos na atualidade. Isso implica agir de acordo com os valores que adotamos a partir da leitura espírita da realidade, situando nosso psiquismo sob o comando do Mais Alto para que nos tornemos instrumentos do Bem e da Paz.
Tal atitude não nos exime da necessidade de ter uma leitura crítica da realidade, mas passamos a analisá-la sob a ótica do movimento regenerativo por que passa a Terra nesse momento. Lembremos a exortação de Bezerra de Menezes [3]: que se não estranhem as dificuldades que se apresentam inesperadamente, causando, não poucas vezes, surpresa e angústia.
(…) Por isso, o refúgio da oração apresenta-se o lugar seguro para reabastecer as forças e seguir com alegria.
Com tal atitude de confiança, o espírita sincero encontrará elementos de compreensão e fortaleza para prosseguir na luta pelo seu progresso moral com valiosas repercussões na vida social. Afinal, ainda com Bezerra [3] que o discernimento superior possa assinalar-nos a todos, e que os mais valiosos recursos que se possuam, sejam colocados à disposição do Senhor da Vinha que segue à frente.
Esperançar, sempre, com luta, ação transformadora no Bem que começa invariavelmente pelo esforço pessoal e intransferível de cada um de nós.
Referências:
[1]. FRANCO, Divaldo Pereira. Tesouros libertadores. Pelo Espírito Joanna de Ângelis. Salvador: LEAL, 2015. cap. 4.
[2]. KARDEC, Allan. A Gênese. Tradução de Guillon Ribeiro. 42. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2002. cap. 18, item 28.
[3] FRANCO, Divaldo Pereira. Amanhecer de uma Nova Era. Pelo Espírito Manoel Philomeno de Miranda. Salvador: LEAL, 2012. cap. 16.